sábado, 16 de outubro de 2010

20TH CENTURY BOYS

De tempos a tempos lá aparece no panorama da BD um título que se demarca pela sua excelência. Milhares de títulos desde a idade de platina da BD até aos dias de hoje trouxeram-nos um já apreciável número de obras-primas. Cerca de 100 anos se passaram desde que este género de arte tomou forma e cresceu até aos moldes que agora conhecemos. Não consigo imaginar o que ainda estará para vir! O que já aqui está, que vou descobrindo, faz-me gostar cada vez mais desta forma de literatura, a ilustrada. Já não tão recentemente dei oportunidade a um género de BD à qual eu colocava reservas: Manga. A fasquia fixou-se mais alto:

Naoki Urasawa é um mestre em thrillers e um dos mais conhecidos e aclamado Mangaka na actualidade. Com formação académica em Economia preferiu a carreira de autor e desenhador de Manga (vulgo Mangaka). Começa a sua carreira de Mangaka em 1983 com o título “Beta!”, desenhou “Pinaple Army” e “Master Keaton”, é autor e artista em “Yawara!”, “Dancing Policeman”, “N.A.S.A.” e “Jigoro”. É a partir de 1994, com “Monster”, que atinge o estrelato e, desde então, todos os seus trabalhos são aguardados com ansiedade por uma legião de fãs. No ano 2000 Urasawa afirma-se ainda mais, mostrando aos fãs do género que não é um autor de uma obra-prima “apenas”: ao mesmo tempo que publica o enorme sucesso “Monster” inicia “20th Century Boys” (“Monster” termina em Dezembro de 2001). Em seguida, adapta a imortal obra de Tezuka Osamu conhecida no Ocidente como “Astro Boy” tomando o título “Pluto” e que o confirma no estatuto de “monstro sagrado” da Manga (já agora, será o título “Pluto” uma analogia à comédia de Aristófanes – que deveria fazer parte do plano de leitura nacional - numa perspectiva que não a do dinheiro, mas da vida e dos direitos?). Nos seus thrillers, Urasawa usa e abusa de referências de todo o género, algumas difíceis de acompanhar, “20th Century Boys” é o melhor exemplo deste especial gosto do autor; também nesta série, o autor mostra o seu gosto pela música (Urasawa é também vocalista e guitarrista de uma banda com trabalho editado http://www.youtube.com/watch?v=CxWaTpXlnUo ). Actualmente, e desde 2008, trabalha na série “Billy Bat”, mais um thriller perturbante e…estranho! Refira-se que o trabalho do autor foi adaptado para Animé (animação japonesa; a série “Monster” encontra-se à venda na cadeia de lojas FNAC, por um preço absurdo, diga-se) e ao cinema “live-action” (com actores humanos).
“20th Century Boys”, eu deveria esperar pelo fim da edição em Inglês desta obra de 225 capítulos em 22 volumes antes de a comentar, mas não consigo esperar. Vai no 11º volume publicado pela VIZ Media em Inglês; os últimos dois volumes têm o título “21st Century Boys”.

“20th Century Boys” é, demograficamente, um “seinen” (jovens adultos e adultos). Foi publicado originalmente entre os anos 2000 a 2006 tendo arrebatado por completo o público e a critica de Manga e não só. Ganhou prémios no Japão e nos EUA. Não foi difícil perceber porquê depois de o ter começado a ler. Desde as primeiras páginas que se mostra como uma obra muito madura e fruto do profundo conhecimento do panorama em que decorre e também da imaginação, desde a realidade japonesa dos finais dos anos 60, no séc.XX, até aos ainda imaginários anos vindouros no corrente século XXI. Embora a acção decorra no Japão, país distante de nós, mesmo no imaginário, verifica-se na obra uma dose elevada de nostalgia. Esta nostalgia atrairá mais o leitor japonês, devido aos lugares e costumes japoneses, mas não deixa de ser contagiante a qualquer um que a leia, afinal fomos todos crianças e guardamos memórias dessa época.

A história começa nos finais dos anos 90 no séc. XX apresentando-nos Kenji Endo, um trintão dono de uma loja “franchisada” que encontra conforto na sua feliz infância e, em aparente paradoxo, na sua adolescência que não vingou dos sonhos de um futuro promissor, para lidar com a sua actual insípida vida. Tomando conta da sua rabugenta mãe e de uma sobrinha, Kenji é confrontado com a morte de um amigo de infância e o desaparecimento de um cliente. A partir destes dois acontecimentos, que depressa se descobrem interligados, começa a intricada trama para “salvar o mundo”. A obra é repleta de “flashbacks” que oportunamente nos transportam a outras épocas onde se deram determinados acontecimentos que culminam na destruição da sociedade Japonesa conforme se conhecia até então. Kenji vê-se atraído para um mistério que se vai adensando, embora que contrariado ao princípio depressa se envolve com espírito indomável de missão extrema. Pelo caminho descobre que acontecimentos passados na sua infância, já esquecidas típicas brincadeiras de criança, subitamente vêm à superfície através de um culto, de uma seita, liderada pelo auto-intitulado “Friend”. Esta seita cresce rápida e perigosamente, convergindo nas intenções pré delineadas pelo seu líder na tomada do Poder e mais. Os acontecimentos, alguns catastróficos, que se vão dando ao longo do percurso de ascensão e consequente hegemonização da seita, são curiosa e misteriosamente iguais àqueles descritos num diário do clube das brincadeiras de infância de Kenji e seus amigos, diário imaginado e escrito pelo próprio Kenji. Esse diário é chamado pela seita dos “Amigos” como “O Livro das Profecias”. Um enredo que assenta na premissa do perigo poder vir do lado que parecer mais inócuo. No caso japonês, assolados por seitas, o perigo embora desdramatizado pelas autoridades é real, conforme acontecimentos dramáticos que já ocorreram no Japão (20 de Março de 1995). Também por o combate ao perigo estar nas mãos dos mais prováveis personagens, o homem e mulher comum. Não existem super-heróis com poderes fantásticos, mas homens e mulheres que num dado momento e debaixo de dadas circunstâncias são obrigados a tomar decisões e empreender acções que poderão ser vistas como extraordinárias, heróicas.

Em “20th Century Boys” os personagens são às dezenas, extremamente bem explorados e dos quais destaco, para além do incontornável Kenji, o improvável indomável Otcho, amigo do circulo interno do clube de infância de Kenji, sagaz e de estatura pequena enquanto criança, personagem que se desenvolve num historial pessoal complexo e dramático. Também, a sobrinha de Kenji, Kanna Endo, a qual é deixada aos cuidados do tio Kenji pela mãe que desaparece em circunstâncias misteriosas. Yoshitsune, outro amigo de Kenji, tímido e franzino e que toma uma improvável importância no enredo. Maruo, também do grupo de infância, um comic-relief estereotipado, o menino gordo que come sempre mais um ramen, que depois de adulto continua gordo e com filhos gordos; talvez, de todos os amigos de Kenji, aquele que mais tem a perder em embarcar na missão de salvar o mundo, mas que por isso mesmo, em contraponto à sua caracterização, demonstra ser o mais corajoso. Friend, o enigmático líder da seita que toma o poder e que ameaça acabar com o mundo; sabe-se que deverá ser um dos amigos de infância de Kenji, quem, só mesmo no final do livro. Yukiji, a amiga Maria-rapaz de Kenji, que de esbaforida em criança passa a adulta ajuizada e profissional responsável, comicamente pronunciada como policial dos narcóticos embora seja oficial alfandegária, tem como parceiro de profissão um cão de nome Blue Tree que, no japonês, é uma brincadeira à pronúncia do nome Bruce Lee. God (Kamisama, no japonês) detesta ser chamado assim, é um vagabundo velhote estranho e obcecado por Bowling que se serve deste para analogias e alegorias de todo o tipo, com inegáveis poderes de clarividência é respeitado pelos seus companheiros do infortúnio e será crucial em definitivamente envolver Kenji na acção. Outros personagens secundários abundam e embora não tão explorados como os principais, merecem ser tratados tridimensionalmente acudindo assim para a muito maior riqueza do enredo; nestes personagens destaco um aspirante a mangaka (old-school). A par da riqueza dos personagens, prima a abundância de referências culturais nas quais temos a preciosa ajuda dos tradutores da obra para o inglês no final de cada livro para, verdade seja escrita, simplesmente as identificarmos (especialmente as japonesas, óbvio!); o título da série será a referência mais flagrante, “20th Century Boy”, é uma música dos T. Rex http://www.youtube.com/watch?v=Ylww2dOW7fg , da autoria de Marc Bolan. O desenho realista é soberbo. O encadeamento da história é brilhante. O autor não é condescendente com o leitor, para o primeiro o segundo é inteligente.

Sendo um enredo de imensos personagens, alimentado por saltos temporais, é-me impossível não compará-lo a uma série televisiva que com a mesma receita tentou (e de alguma forma até conseguiu) atrair uma multidão de espectadores: “Lost”. Infelizmente para mim, “Lost”, depois de o início promissor que foi a primeira temporada, já a meio da segunda temporada percebi que os escritores da série não conseguiriam resolver, desatar, o imbróglio onde se meteram. A complexidade dos personagens e das situações acabaram por ser resolvidas com “coelhos-tirados-da-cartola”, coincidências convenientes, troca de personalidades mal paridas, e “vamos-lá-matar-um-personagem-para-trocar-as-voltas-ao-pessoal” demasiadas vezes! Um final quase Deus Ex-Machina que até poderia ser considerado infantil. Alguns autores de thrillers famosíssimos poderiam lhes ter ensinado que parte do sucesso de se conseguir explorar uma situação complicada que necessita de resolução inesperada e até brilhante mas bem fundamentada estará exactamente em não complicar demasiado, isto é, evitar segundos (terceiros, quartos, etc.) enredos paralelos; explorar os personagens, sim; torná-los tridimensionais para os fazer mais credíveis, sim; mas complicá-los demasiado para além do controlável, não; não abusar em personagens secundários inconsequentes também é obrigatório. Para o moto, idem. Em “Lost” perdeu-se o fio à meada. Quando comecei a ler “20th Century Boys” e, ao fim do terceiro volume, apercebendo-me do enorme número de personagens (que continuou a aumentar), e das várias situações temporais exploradas alternadamente, fiquei receoso que estaria a ler algo que me traria, cedo ou tarde, alguma desilusão: será que o autor conseguiria resolver, desatar, o imbróglio em que se estava meter? Pois, os escritores de “Lost” teriam muito a aprender com Urasawa. Com as devidas desculpas de não saberem quando serão e se serão retirados do “ar”, tendo que resolver a situação abruptamente (ou não, ver “Flashforward”!), deveriam ter as coisas mais bem estudadas para evitarem epítetos de acéfalos. Enfim…”20th Century Boys” é uma novela que demonstra muito bem que os conselhos de Agatha Christie ou Sir Arthur Conan Doyle, entre outros, devem ser seguidos, se se tiver inteligência para os perceber. Não li até ao fim, pois ainda não foram todos editados em inglês, mas já vi o filme, por isso arrisco (pouco) neste comentário.

Eu, pelo que até agora li, aconselho com veemência esta série Rock’n Roll Manga.

Curiosidades divertidas:

Este é o link para a música do filme “live-action” “20th Century Boys”, cantada pelo próprio Naoki Urasawa (ainda bem que ser cantor não é o seu principal ofício, gostos à parte!) e da autoria de “Bob Lennon” (Kenji Endo), “Gu ta la la”:
http://www.youtube.com/watch?v=cth3QHUDF_I&feature=related

A versão japonesa, ao vivo em 1992 no Tokio Dome de “20th Century Boy”(T.Rex), por Hide:
http://www.youtube.com/watch?v=h2UYOpW-3G4&feature=related

Ou, com um som melhor, em 1994, pelos mesmos Hide:
http://www.youtube.com/watch?v=TO_uUrvpOj0&feature=related